quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Recordações de uma repórter

Noites quentes de verão costumam me trazer à lembrança os meses que trabalhei como repórter do jornal O ValeParaibano, na sucursal de Caraguatatuba, no litoral Norte paulista. O cargo era ocupado por Salim Burihan, intrépido repórter, meu amigo até hoje, que acabara de ser contratado pela Folha de S. Paulo, o que me deu a oportunidade de ir para lá. Coincidiu que minha família herdara um sobrado no bairro do Tinga, que ninguém usava, e me mudei para Caraguá. Levei ou comprei, não lembro, uma bicicleta, que eu usava para fazer matérias em locais mais próximos; aprendi a fotografar, com a ajuda do chefe da fotografia do Vale, Paulo Torraca e, em muitas ocasiões minhas reportagens eram capa do jornal. 

Cobria crimes ambientais, quase sempre. Desmatamentos na Serra do Mar, prisão de palmiteiros, manchas de óleo no mar (que vazavam dos petroleiros sucateados da Petrobrás), ocupações ilegais, pesca predatória, lixo nas praias, esgoto lançado no mar e mais um tanto de coisas. Em outubro de 92 cobri as operações de resgate dos ocupantes de um helicóptero arremessado ao mar por uma tempestade, num local chamado Ponta Negra, limite de Ubatuba e Paraty, cujos um dos corpos, o do deputado Ulysses Guimarães, como todos sabem, jamais foi encontrado. Passei quase uma semana no condomínio de luxo que servia de base para as equipes de busca, junto com um batalhão de repórteres e fotógrafos, acompanhando o resgate. Conheci o Gabeira cobrindo para a Zero Hora, o Ernesto Paglia, para a Rede Globo. Fiquei tostada, porque ficávamos o dia todo lá, sem proteção, água ou comida, esperando a informação que seria a matéria do dia. Aprendi muito naquela cobertura.

Mas o melhor tempo da minha vida de correspondente aconteceu no dia que entrei no botequinho ao lado da sucursal e descobri um pessoal lendo as minhas matérias nas laudas de jornal que eu havia jogado fora. Sim, naquele tempo a gente escrevia tudo em laudas datilografadas numa Olivetti. Eles tinham recolhido a pilha (de uns 15 centímetros de altura), com todas as matérias que eu havia publicado nos últimos meses e se divertiam lendo as historias. Fiquei intrigada, afinal,  não tinham lido no jornal? Curiosamente, entendi que ler na lauda lhes parecia mais interessante. Eles recordavam as histórias esquecidas, podiam ler aleatoriamente, ver as palavras cortadas ou acrescidas de última hora, entender detalhes das reportagens que o jornal, nos processos de edição, tivessem tirado o gosto. Lembro de perguntar porque liam as laudas e alguém respondeu, "tá gostoso de ler aqui". Simpatizei com eles e formamos uma amizade que duraria todo aquele verão e que eu guardo como um dos melhores tempos da minha vida. 

O grupinho era formado pelo Mané Português, dono do bar, o Henrique, contato publicitário do jornal e a menina do administrativo, cujo nome não lembro. Embora fôssemos colegas, foi a partir daquele momento que nos tornamos amigos. Éramos pobres, tínhamos uma vida marginal. Eu, apesar de jornalista e de gozar de algumas regalias, não queria compactuar com a vida tosca da cidade e preferia a companhia dos meus novos amigos. Henrique emprestava do colega de quarto um fusca 67 ou 69 (emprestava!), um cacareco e a gente dava altos rolês pela região. No auge daquele verão de 92/93, fazia um calorão dos infernos, faltava água na cidade, a gente passava sufoco o dia todo, mas a noite íamos nos refrescar no "polção".

Tinha uma placa, escrito assim mesmo, na entrada do local. Um grande poço, formado por uma cachoeira, em meio a mata, que servia de luxuosa banheira para aliviar o calorão daquele meses quentes. Ficávamos os quatro, cada um acocorado numa pedra, durante uma hora ou mais, até o corpo gelar. A gente parava o carro longe, atravessava uma cerca de arame farpado, pegava uma trilha e seguia até o poço, com o Mané Português, medroso que era, mandando falar baixo para não despertar a atenção da dona do terreno que a gente atravessava.  Foram muitas noites ali, contando histórias, reclamando e rindo da vida. Até hoje fecho os olhos e me recordo das sensações de prazer e medo que aqueles banhos noturnos, no meio do mato, com os barulhos estranhos da noite, me proporcionavam. 

Um dia me avisaram que o sobrado tinha sido vendido e, com a pobreza do salário que eu recebia, me mudei para a casa onde funcionava a sucursal. Eu morei na sucursal uns três meses ou mais! De dia, escrevia as matérias; à noite, tirava um colchão de trás do armário, colocava no chão e dormia por lá mesmo. Mais de vinte anos se passaram e ainda me pergunto como fui capaz. A sucursal tinha um vigilante noturno, um brutamonte que me considerava patrimônio do jornal. Eu costumava ficar sabendo, dias depois, que tinham me procurado, alguém me chamando para uma cerveja, e ele dizia que eu não estava e depois justificava que era para me proteger...

Naquela época, um colega da Gazeta Mercantil sugeriu que eu escrevesse essa história: uma repórter que morava dentro da sucursal, fazia matérias de bicicleta e tomava banho de cachoeira à noite. Prometi que o faria e agradeço pelo incentivo, embora não saiba mais onde encontrá-lo para dizer que, hoje, finalmente, cumpri a promessa. 





sexta-feira, 3 de janeiro de 2014


"A paixão é mentir tudo o que você não é. 
O amor é começar a dizer a verdade." 

(Fabrício Carpinejar)