Praia do Sono, na divisa do litoral Norte paulista e o Sul fluminense, tinha sido desde muito tempo um desejo de descoberta quase mítico. Ouvira falar muitas vezes, mas imaginava uma grande dificuldade de acesso. Lá não chega carro, não tem pousada, apenas uma comunidade de pescadores, que serve comida em seus ranchos de pesca. Até que um dia uma faceira amiga de aventuras topou e lá fui para Sono.
Saindo de Paraty, uns 13 km em direção ao Sul, pega a estrada de Trindade, mas no ponto mais alto, bifurca à esquerda até a portaria do luxuoso condomínio Laranjeiras. Da portaria, quem vai para o Sono é orientado a pegar um caminho que leva ao lado pobre do condomínio, onde vivem os empregados das mansões. Por ali, o caiçara abandonou as atividades da pesca para se tornar empregado doméstico.
O carro fica estacionado na vila e quem vai paro o Sono começa uma caminhada de uma hora mais ou menos por trilha íngreme que margeia o mar. Há belíssima paisagens, cachoeiras, pequenos animais e muita, muita árvore linda, uma mais linda que a outra. Voltei lá muitas vezes, o caminho tornou-se fácil com o tempo, mas aquela primeira expedição foi cheia de sentidos.
Quando descemos a última parte da trilha, e botei o pé na areia grossa, finalmente entendi o que é a Praia do Sono: uma maravilhosa extensão de mar verde-escuro, de bravura branda, com uma longa borda branca e borbulhante, todo margeado por imensos chapéus-de-couro, de frondosos ramos que acolhem os ranchos de pesca e oferecem generosa sombra. É um desejo de não despertar, de ser absorvido por aquela beleza e não retornar nunca mais.
Seguimos caminhando pela areia. Eu estava encantada, aliviada de ter vencido a temida trilha, de estar naquele lugar que a geografia protegeu da chegada civilizatória e da consequente deterioração que se vê em praias e comunidade da região.
Subindo a faixa de areia, que não é muito larga, no terreno plano, de chão batido, ficam os ranchos dos pescadores e mais ao fundo as casinhas caiçaras, de pau-a-pique, pintadas de branco, com janelinhas ao lado da porta e uma chaminé, igual os desenhos da minha infância. Não há cerca nem muros, as crianças brincam à vontade, é cheio de vira-lata, os homens reunidos costurando as redes e as mulheres em seus afazeres. No extremo da praia tem uma entrada para a comunidade, tudo por trilha, margeando um riacho que vem da Serra, e quando se encontra alguém no caminho, é sempre bom dia, boa tarde, porque essa gente é simples, mas é educado cumprimentar, tratar por senhor, senhora.
Por umas três ou quatro da tarde decidimos que era hora de pegar o caminho de volta. Seguimos pelos ranchos, protegendo de chuva fina que veio com uma virada do tempo. De longe, avistei um rancho cheio de gente sentada nos caibros laterais, era feriado de ano novo, férias e sempre tem turista por ali. Passando pelo rancho, sou surpreendida por um "professora"!
Paralisei. Estava na minha frente um rapaz alto, negro, de drede no cabelo, vestido como um hippie, segurando um pano preto pendurado de brincos de miçangas e penas coloridas. "Não lembra mais de mim?"
Ainda que eu estivesse sob efeito alucinógeno, conseguia raciocinar para ter certeza de que aquele não tinha sido, definitivamente, meu aluno. Eu era professora numa escola da zona sul de São Paulo, particular e cara. "Se você tivesse sido meu aluno, eu me lembraria", respondi. Ele caiu na risada. Mostrando uma boca com poucos dentes, apontou uma garota e respondeu: "tô brincando, professora, ela é sua aluna".
A moça sentada entre a galera tinha os cabelos crespos soltos, usava um brinco do hippie, roupas largas e sorria para mim, se divertindo com a brincadeira e com a cara de susto que eu devia estar. Veio até mim e me abraçou feliz. "Que legal te encontrar aqui, professora!"
Fiquei um tempo olhando, buscando o reconhecimento: era uma aluna atenta e muito quieta, que sentava na primeira fileira e estava sempre com um uniforme verde escuro e cabelo preso, talvez exigência de uma função burocrática. Tinha perdido a prova final, mas eu - sei lá por que, talvez porque a fosse encontrar lá no Sono - tinha resolvido aprová-la sem prova nem trabalho extra, quando veio me pedir ajuda no final do semestre, pelo simples fato de que tinha sido assídua e ouvinte atenta - coisas que sempre achei que devessem bastar a um aluno de graduação: atenção, interesse, envolvimento, presença.
Mais raro que um professor encontrar o aluno certamente é o aluno encontrar o professor... numa praia de pescadores, onde só se chega à pé ou de barco. Jamais me esquecerei dela, ainda que não lembre seu nome.
Aquele encontro, naquele momento e naquele lugar, foi só uma pequena prova de que as decisões que tomei nem sempre foram as mais coerentes, nem os caminhos, os mais fáceis.
Minha razão sempre se mostrou falha, mas minha intuição me reservou boas surpresas. Já nos atalhos, me cansei de encontrar corações, aquele foi só mais um.