terça-feira, 31 de março de 2015

Os pivetes e eu

Descia a avenida sozinha, não vinha ninguém atrás de mim e o rapaz que caminhava uns cem metros adiante, levando uma mochila nas costas, atravessou a rua quando avistou os dois garotos, com menos de um metro e meio de altura, que pareciam cambalear e subiam a Augusta na nossa direção. Senti certo receio, chequei se a bolsa estava firme, mas me mantive na mesma calçada e me preparei para o confronto.
Nesta época, eu morava numa rua feia do Baixo Augusta, perto do centrão de São Paulo. Baixo por causa da geografia e acho que por causa das boates, garotas de programa e tipos mal encarados vistos por ali. De dia, eu gostava de olhar lojinhas de roupas para putas e travestis, os sebos de livros e discos. As fachadas dos velhos hotéis. Mas naquela noite de domingo, não havia ninguém na rua, estava tudo fechado. Eram os pivetes e eu.
Quando nos cruzamos, vi que eles mudaram o ritmo do passo, um mais à frente que o outro. Sem pensar muito,  mas já intuindo o que fazer, inverti a lógica e fiz a abordagem, os tomando de assalto. Parei entre os dois garotos e perguntei "o que é isso ai?". Tomei a garrafa que um deles tinha na mão e cheirei a cola, que já não tinha mais efeito.  
Não lembro bem, mas a partir dali teríamos uma noite de bom papo, troca de informações, algumas risadas. Falamos onde ficava nossa casa, contei minha idade, falei que era professora (não jornalista) e fiquei sabendo que a especialidade da dupla era roubo de relógios. Estranhei a opção, por que não celulares? Me deram uma resposta que esqueci. Tínhamos muitos assuntos, havia muita coisa que queríamos saber, estávamos curiosos e interessados, eu neles, eles em mim. O menorzinho, titico, era inteligente e gozador e contava histórias atrapalhadas do outro, o parceiro mais calado.   
Descemos juntos em direção à Sé. Paramos perto do Teatro Municipal, escuro e deserto, e ficamos observando de longe uns policiais que, curiosamente, não estranharam uma mulher com dois pivetes naquela hora e lugar. O mais esperto sabia: pensam que você é p... E, de fato, não nos aborreceram.
Descemos as escadas para o Anhangabaú e eles me levaram num bar gorduroso e pouco limpo, cujo dono não queria nossa presença. Vamos jantar, informei. Fiquei temerosa (e levei outra bronca do homem) quando vários outros pivetes, saídos não sei de onde, começaram a aparecer na porta do bar. Quatro, seis, oito moleques olhando lá para dentro. E se eles invadissem, fizessem um arrastão, virasse um motim, qual seria minha culpa? Mas nada aconteceu. Eles vinham curiosos, eram repelidos e desapareciam. Entre eles, havia uma menina duns 17 anos, encardida, e o moleque pequeno me pediu: "posso dar minha comida para ela, ela é minha amiga".
Já passava da meia noite, avisei que ia embora e pedi que os meninos refizessem o caminho de volta comigo. Por ironia, eu estava com medo de voltar sozinha. Achamos um mercadinho aberto e achei que seria divertido fazer compras com eles. Com espantosa rapidez saltou uma moça na nossa frente, indagando: "o que é isso?". Eles me avisaram que eram proibidos de entrar lá. A gerente se certificou de que eu fosse a responsável e nos deixou em paz. Com ligeireza e irredutibilidade nas escolhas, vieram para dentro do carrinho um refri amarelo, uma bolacha de recheio branco, uns salgados crocantes e mais um ou dois itens que não custaram mais que 20 reais. Por um momento, os pivetes reinaram entre as gôndolas do mercadinho de merda e foram felizes. Fiquei orgulhosa de como eram espertos e cheios de astúcia. E meu coração achou, por uns momentos, que era capaz de fazer coisas boas.  
Depois, como dois cavalheiros, foram comigo até a porta do prédio da rua feia onde eu morava. Não os convidei para entrar. E se eles não fossem mais embora, e se eu ficasse comprometida para sempre, se me tornasse eternamente responsável pelo que cativava?
Trocamos beijinhos na despedida, devemos ter prometido um reencontro, mas não recordo seus apelidos, nem suas feições.
Restou deles uma experiência, que vive como lembrança num lugar onde freqüentemente vou e que me coloca de frente à minha angústia.

terça-feira, 30 de setembro de 2014

Contra o sofrimento, não contra o pecado

Tenho uma amiga querida que uns anos atrás fez um aborto. Morávamos juntas e tínhamos grande cumplicidade. Eu conhecia bem seus hábitos, seus medos, seus sonhos, suas expectativas. Nossa  diferença de idade é de 15 anos mais ou menos, portanto na época eu ja estava formada, trabalhando, tinha meu filho e ela estava saindo da faculdade.
Minha amiga sempre gostou de se divertir, costumava sair nos finais de semana, beber um pouco e, não raro, arrastava alguém prá passar a noite com ela, às vezes se apaixonava, outras não queria mais saber do cara, tinha surpresas e decepções. Sempre achei tudo isso normal, ela estava numa fase legal da vida, de poder se entregar a muitas experiências.
Ela sempre se preocupava com a camisinha. Mesmo bem drunk,  nunca deixava de usar. Só que um dia, que  ela não conseguia se lembrar bem, alguma coisa deu errada. Ela tinha certeza de ter dado a camisinha pro cara, mas ainda assim, minha amiga ficou grávida.
Passamos uma semana inteira conversando sobre o assunto. Ponderei com ela, muito  longamente, todas as possibilidades: ela ter o filho sozinha, ela falar pro cara, ela conversar com a família; sobre as mudanças positivas que poderiam se dar na sua vida com a chegada de um bebê. Usei uma frase que eu mesma ouvi quando fiquei grávida: filho traz sorte.
Apesar de todos os argumentos e dos exercícios de imaginação sobre o futuro da minha amiga com um filho, ela quis fazer o aborto.
Cconseguiu o endereço de um médico, num prédio comercial elegante, numa área nobre de São Paulo. Só havia uma mulher idosa na recepção. O médico também era um homem de uns 60 anos. Entrei com ela na consulta, ele fez várias perguntas e um exame de toque. Depois do acerto financeiro, feito com a secretária (acho que uns 3 mil reais na época) pegamos o endereço de um outro local, onde minha amiga deveria ir no dia seguinte.
No outro prédio, perto do centro,  a placa da sala indicada "centro de fertilização humana". Fomos recebidas por uma secretaria/enfermeira, que nos tranquilizou dizendo que tudo se resolveria bem rápido. E foi. Pouco depois o médico entrou por uma porta dos fundos. Minha amiga ficou cerca de 20 minutos lá dentro. Da sala de espera eu só ouvi um som parecido a de um aspirador.
Ela dormiu por uma hora. Acordou um pouco grogue mas se recuperou bem rápido. Ficamos ali mais algum tempo, para que a enfermeira tivesse certeza de que ela estava bem. Saímos de lá com minha amiga caminhando e profundamente  aliviada. Ela não queria ter um filho solteira, de um cara desconhecido, que ela encontrara uma ou duas noites.
Minha amiga agora é mãe de duas crianças lindas, e ela e o marido andam planejando mudar do apartamento para uma casa, porque eles pensam em ter mais um filho.
Minha amiga tem vocação para ser mãe, para ser mulher, para ser amante, para ser profissional, para ser feliz.
Ninguém tem o direito de julgar as escolhas do outro. E cada um deve fazer aquilo que avalia ser melhor para si.

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

UNFOLLOW

Não sigo mais você.
Não quero mais saber o que você comeu, que filme você assistiu, qual o novo livro na sua estante.
Não quero mais ver que lugares tem visitado, que piada você curtiu, quem será seu candidato, nem qual era seu humor, quando saiu da cama hoje.

Não sigo mais você.

Não quero mais me perturbar com a nova amiga do seu face,  seguir os rastros dos seus posts, nem invejar sua alegria naquela foto postada ontem.

Não sigo mais você.
Não vou reler o último torpedo,  arquivei todos os emails, deletei aquele vídeo e que se dane aquela bolinha verde, anunciando você na rede. Nem teu signo mais eu leio.

E juro:  teu OFF nunca mais me fará sofrer.


De agora em diante, só quero a coisa bruta da tua presença, com seus cheiros perturbantes, seus gostos delirantes e seus versos que só pelos poros da minha pele posso  compreender.


Não sigo mais você.

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

AMANTES


CHOVIA
NA NOITE DO ESPLÊNDIDO EMBATE.

DOS DOIS LADOS OS COMBATENTES EXERCERAM PLENAMENTE A VONTADE DE POTÊNCIA.

EXTENUADO, ELE ADORMECEU.

EM VIGÍLIA, ELA VIU SUA ALMA SUTILMENTE TRANSITAR DO MAIS AMARGO ÓDIO
AO MAIS APAIXONADO AMOR.

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

DECOTADA

Tem mulher que põe calça agarrada, outra passa batom vermelho, tem a que usa saia curta e a que pendura brincão. Eu mostro os peitos. Não escondo nem na missa. Acho lindo ser assim, peituda, e às vezes, despeitada. Peito é coisa que cresce com a gente, não existe na meninice e aos poucos vai despontando, se avolumando, envergonhando, até ocupar-se do seu lugar. Aí, vira mulherão. Peito cresce, encolhe e murcha; peito encanta, excita, enrijece e balança; peito acolhe, conforta, enche de leite e derrama. Grandão, redondo, pontudo, ovo frito, flácido, rosado, despencado, siliconado, junto ou separado, não importa. Peito pula de alegria, salta de tesão, explode de raiva, se oprime na saudade. Mostra o peito, mulher! tenho vontade de dizer, mas peito é coisa que se res-peita. Peito a gente ama, mama, nina. Peito é assim, exuberante, provocativo; pode ser delicado e sensível e muitas, muitas vezes, peito fica dolorido, angustiado, solitário, e é até traído. Peito dói, peito adoece. Se pudesse, extirpava. Mas, peito de verdade, esquece a dor, se apruma, veste seu melhor decote e vai a luta sem pudor.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Sob a sombra do Chapéu Mangueira

Morei quatro meses numa favela do Rio, no Chapéu Mangueira, comunidade pequena do Leme, ao lado da Babilônia. Tinha cansado da experiência de alugar quarto em Copacabana e aceitei pagar os 900 reais mensais por uma casa pequena. Dei sorte. Inacabada, como quase tudo na favela, a casa ficava no fim de uma viela usada por poucas famílias. Para entrar no meu terreno atravessava um portãozinho no fim da subidinha. Era bem privativo, silencioso e suficiente para mim, com dois  quartos pequenos, uma cozinha minúscula e um banheirinho, mas recebi até quatro pessoas para jantar. Para ver o mar eu subia na laje. Para chegar à praia era só descer o escadão. 

Chapéu Mangueira é uma comunidade que não tem mais espaço para crescer. Isso faz com que cada palmo do terreno seja  valioso e disputado. A maior parte das famílias vive na favela a três ou quatro gerações, são pessoas nascidas lá, que têm orgulho disso, mas eles sabem que seus filhos já não poderão construir seus lares lá dentro. Entre outros fatores, isso mantém as famílias unidas, os lares vão crescendo para o alto e a falta de oportunidade para os filhos, como estudar fora, evita o desgarramento. São estruturas que agregam os pais, os avós, filhos, netos, bisnetos. 

A falta de espaço também é motivo de rivalidade entre os moradores. A cara feia da vizinha era reflexo dos conflitos com os donos da obra onde ficava minha casa. A construção sufocou a casa dela, enfiada num buraco na frente da minha. Meio metro a mais de parede pode obstruir a entrada de vento ou sol por uma janela, o que é péssimo para ambientes que já são apertados, mal planejados e construídos. Muita gente vive em porões nada agradáveis, úmidos e embolorados. Quando pude, incentivei as pessoas a instalar  janelas maiores. A minha casa ficava encostada numa grande rocha e eu ouvia o murmúrio da água que minava nos  fundos e mofava minhas roupas. Batia pouco sol na casa. Fiquei doente umas quatro vezes. 

Chamava minha atenção a saúde das mulheres. As meninas, de corpinhos esculturais aos 13, 14 anos, chegam disformes aos 30 e são obesas aos  40. Não fiz pesquisa, mas pude constatar que há muitas mortes prematuras, por diabetes ou doenças do coração, como a mãe da moça que me alugava a casa. A sogra dela também era tão gorda que já fazia muito tempo que não saía de casa. Conheci mulheres bem velhas, de uma associação comunitária, gozando de alguma saúde, todas viúvas, porque os homens também adoecem e morrem cedo. Eram sobreviventes do lúgubre. 

Acho que outra causa da  obesidade (sem descartar a genética do negro carioca), devia ser a dificuldade de se alimentar bem. 
Eu subia quase 200 degraus (sempre perdi a conta  no final), duas ou três vezes por dia e via o sofrimento das pessoas, carregando as compras e tendo que parar no caminho para respirar. É dureza subir morro e longas escadarias com sacolas pesadas, tarefa quase sempre das mulheres. Comprar dentro do morro custa muito caro (certa vez paguei 3 reais num sabonete) e quase não tem comércio de alimentos crus lá em cima. E como se alimentar bem com os preços dos mercados da zona sul? Até para mim,  jornalista pós-graduada e professora universitária, a vida era muito cara. Sim, meu salário podia ser ridículo, mas a maioria vive com menos que você e eu pagamos de cartão de crédito. 

Outra explicação para a obesidade podia ser a quantidade absurda do consumo de industrializados baratos. Sacos de salgadinhos do tipo chips e copos de guaraviton ficam espalhados por toda a comunidade, em geral descartados pelas crianças e jovens adolescentes. Parece que chips é um tipo de alimento básico entre aquela população. Ficava imaginando oferecer à empresa do guaraná um projeto de responsabilidade social dentro da comunidade,  já que a favela inteira consumia a água açucarada com essência de guaraná. Eles podiam ensinar a recolher, reciclar, sei lá. 

Nunca passei medo morando na favela, nem quando andava de madrugada pelos becos mal iluminados. Entrava e saía com malas, viajava no final de semana e deixava tudo na casa. A porta da frente estufou por causa da umidade,  mandei arrumar duas vezes e voltou a empenar. Ficou mais de um mês daquele jeito, só encostada, e nunca sumiu nada, nem  um par de sapatos que, aliás, ficava num caixote do lado de fora. O terreno era fechado, mas isso não significava nada para a segurança, qualquer um entraria se quisesse. Sempre tive postura cautelosa em relação aos policiais da UPP, mas procurava olhar nos olhos deles. Observei que eles não olhavam na nossa cara, mas não presenciei qualquer violência naqueles meses. Chapéu Mangueira é quieta, cordata.  

Não encontrei na favela diversão de acordo com o nosso imaginário. Nunca vi um baile funk ou curti um bom pagode (festas só nos hostels de estrangeiros). Mais popular era o Bar do Davi, boteco do guia da Veja, que fechava cedo e era só para comer e beber. Tocava, sim, muita musica gospel e há vários templos evangélicos. Quase toda a favela converteu-se ao pentecostalismo. Assim como ouvi muitos relatos de apoio à pacificação.  A família que me alugava a casa também é dona de um hostel e eles sempre defenderam o controle pela polícia. Também são novos crentes.

Para mim, o certo não era nem  polícia nem pastor. Nem funk nem gospel. Nem medo nem liberdade vigiada. Gostaria era de andar numa favela de casas pintadas de verde-limão, ouvir sons diferentes de cada janela, provar da comida cujo cheiro do alho frito impregnava as vielas no meio da manhã. Dava para ouvir o chiado da panela de pressão.  Queria uma favela lavada todo dia com pinho sol. Superficialidade desejar uma favela colorida e cheirosinha. Mas salubridade, comida e cultura são essenciais. 

 Ainda assim, fui feliz lá.

Viver dentro da favela me fazia sentir que eu tinha uma vida igual de todo mundo, com as mesmas agruras. Subir a escadaria era uma penitência diária pelo pecado de ter um corpo. Quando ia chegando, o mal cheiro da viela me lembrava que atras de mim ficava o mundo da pseudo felicidade da orla.  Entrar naquele território era viver a coisa crua, com as casas deixadas no concreto, a sujeira espalhada sem nenhuma vergonha, a evidência da outra lógica, de outras noções de vida e de organização social, com suas lutas e regras próprias. 

Fui feliz. Até  namorei. Sweet nights with Mike. Enquanto eu cozinhava, ele me ensinava pronunciar corretamente trechos dos meus rock's preferidos. 

Salvei os gatinhos de morrer de fome, castrei gatas parideiras (elas chegam a ter dez ou mais crias), levava as crianças da vizinha para a praia, enquanto ela trabalhava feito louca para alimentar os três, sem marido. Conheci gente que me convidava para entrar em suas casas com sinceridade e sentia prazer em conversar sobre a vida.


Fui feliz. 

Pena que quase não tenho fotos para ilustrar o texto. Quase todas estavam no meu notebook, furtado num hostel bacaninha, onde passei uma noite, na Vila Madalena, em São Paulo.

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Sem esquecimento não haveria felicidade

O esquecimento é como a digestão corporal: tritura, pulveriza, desfaz as experiências, assimila-as



Sem capacidade de esquecimento não haveria felicidade, nem jovialidade, nem esperança, nem sequer orgulho. De que poderia me orgulhar se continuamente recordasse todas as minhas humilhações? Que esperança me pode restar se diante de mim aparecessem todos os meus fracassos, como se tivessem projetados em uma tela? Que jovialidade poderia se manter se recordasse todas e cada uma de minhas caduquices?

De Michel Foucault