Tenho uma amiga querida que uns anos atrás fez um aborto. Morávamos juntas e tínhamos grande cumplicidade. Eu conhecia bem seus hábitos, seus medos, seus sonhos, suas expectativas. Nossa diferença de idade é de 15 anos mais ou menos, portanto na época eu ja estava formada, trabalhando, tinha meu filho e ela estava saindo da faculdade.
Minha amiga sempre gostou de se divertir, costumava sair nos finais de semana, beber um pouco e, não raro, arrastava alguém prá passar a noite com ela, às vezes se apaixonava, outras não queria mais saber do cara, tinha surpresas e decepções. Sempre achei tudo isso normal, ela estava numa fase legal da vida, de poder se entregar a muitas experiências.
Ela sempre se preocupava com a camisinha. Mesmo bem drunk, nunca deixava de usar. Só que um dia, que ela não conseguia se lembrar bem, alguma coisa deu errada. Ela tinha certeza de ter dado a camisinha pro cara, mas ainda assim, minha amiga ficou grávida.
Passamos uma semana inteira conversando sobre o assunto. Ponderei com ela, muito longamente, todas as possibilidades: ela ter o filho sozinha, ela falar pro cara, ela conversar com a família; sobre as mudanças positivas que poderiam se dar na sua vida com a chegada de um bebê. Usei uma frase que eu mesma ouvi quando fiquei grávida: filho traz sorte.
Apesar de todos os argumentos e dos exercícios de imaginação sobre o futuro da minha amiga com um filho, ela quis fazer o aborto.
Cconseguiu o endereço de um médico, num prédio comercial elegante, numa área nobre de São Paulo. Só havia uma mulher idosa na recepção. O médico também era um homem de uns 60 anos. Entrei com ela na consulta, ele fez várias perguntas e um exame de toque. Depois do acerto financeiro, feito com a secretária (acho que uns 3 mil reais na época) pegamos o endereço de um outro local, onde minha amiga deveria ir no dia seguinte.
No outro prédio, perto do centro, a placa da sala indicada "centro de fertilização humana". Fomos recebidas por uma secretaria/enfermeira, que nos tranquilizou dizendo que tudo se resolveria bem rápido. E foi. Pouco depois o médico entrou por uma porta dos fundos. Minha amiga ficou cerca de 20 minutos lá dentro. Da sala de espera eu só ouvi um som parecido a de um aspirador.
Ela dormiu por uma hora. Acordou um pouco grogue mas se recuperou bem rápido. Ficamos ali mais algum tempo, para que a enfermeira tivesse certeza de que ela estava bem. Saímos de lá com minha amiga caminhando e profundamente aliviada. Ela não queria ter um filho solteira, de um cara desconhecido, que ela encontrara uma ou duas noites.
Minha amiga agora é mãe de duas crianças lindas, e ela e o marido andam planejando mudar do apartamento para uma casa, porque eles pensam em ter mais um filho.
Minha amiga tem vocação para ser mãe, para ser mulher, para ser amante, para ser profissional, para ser feliz.
Ninguém tem o direito de julgar as escolhas do outro. E cada um deve fazer aquilo que avalia ser melhor para si.
terça-feira, 30 de setembro de 2014
sexta-feira, 5 de setembro de 2014
UNFOLLOW

Não quero mais saber o que você comeu, que filme você assistiu, qual o novo livro na sua estante.
Não quero mais ver que lugares tem visitado, que piada você curtiu, quem será seu candidato, nem qual era seu humor, quando saiu da cama hoje.
Não sigo mais você.
Não quero mais me perturbar com a nova amiga do seu face, seguir os rastros dos seus posts, nem invejar sua alegria naquela foto postada ontem.
Não sigo mais você.
Não vou reler o último torpedo, arquivei todos os emails, deletei aquele vídeo e que se dane aquela bolinha verde, anunciando você na rede. Nem teu signo mais eu leio.
E juro: teu OFF nunca mais me fará sofrer.
De agora em diante, só quero a coisa bruta da tua presença, com seus cheiros perturbantes, seus gostos delirantes e seus versos que só pelos poros da minha pele posso compreender.
Não sigo mais você.
quarta-feira, 3 de setembro de 2014
AMANTES
sexta-feira, 29 de agosto de 2014
DECOTADA
Tem mulher que põe calça agarrada, outra passa batom vermelho, tem a que usa saia curta e a que pendura brincão. Eu mostro os peitos. Não escondo nem na missa. Acho lindo ser assim, peituda, e às vezes, despeitada. Peito é coisa que cresce com a gente, não existe na meninice e aos poucos vai despontando, se avolumando, envergonhando, até ocupar-se do seu lugar. Aí, vira mulherão. Peito cresce, encolhe e murcha; peito encanta, excita, enrijece e balança; peito acolhe, conforta, enche de leite e derrama. Grandão, redondo, pontudo, ovo frito, flácido, rosado, despencado, siliconado, junto ou separado, não importa. Peito pula de alegria, salta de tesão, explode de raiva, se oprime na saudade. Mostra o peito, mulher! tenho vontade de dizer, mas peito é coisa que se res-peita. Peito a gente ama, mama, nina. Peito é assim, exuberante, provocativo; pode ser delicado e sensível e muitas, muitas vezes, peito fica dolorido, angustiado, solitário, e é até traído. Peito dói, peito adoece. Se pudesse, extirpava. Mas, peito de verdade, esquece a dor, se apruma, veste seu melhor decote e vai a luta sem pudor.
segunda-feira, 25 de agosto de 2014
Sob a sombra do Chapéu Mangueira
Morei quatro meses numa favela do Rio, no Chapéu Mangueira, comunidade pequena do Leme, ao lado da Babilônia. Tinha cansado da experiência de alugar quarto em Copacabana e aceitei pagar os 900 reais mensais por uma casa pequena. Dei sorte. Inacabada, como quase tudo na favela, a casa ficava no fim de uma viela usada por poucas famílias. Para entrar no meu terreno atravessava um portãozinho no fim da subidinha. Era bem privativo, silencioso e suficiente para mim, com dois quartos pequenos, uma cozinha minúscula e um banheirinho, mas recebi até quatro pessoas para jantar. Para ver o mar eu subia na laje. Para chegar à praia era só descer o escadão.
Chapéu Mangueira é uma comunidade que não tem mais espaço para crescer. Isso faz com que cada palmo do terreno seja valioso e disputado. A maior parte das famílias vive na favela a três ou quatro gerações, são pessoas nascidas lá, que têm orgulho disso, mas eles sabem que seus filhos já não poderão construir seus lares lá dentro. Entre outros fatores, isso mantém as famílias unidas, os lares vão crescendo para o alto e a falta de oportunidade para os filhos, como estudar fora, evita o desgarramento. São estruturas que agregam os pais, os avós, filhos, netos, bisnetos.
A falta de espaço também é motivo de rivalidade entre os moradores. A cara feia da vizinha era reflexo dos conflitos com os donos da obra onde ficava minha casa. A construção sufocou a casa dela, enfiada num buraco na frente da minha. Meio metro a mais de parede pode obstruir a entrada de vento ou sol por uma janela, o que é péssimo para ambientes que já são apertados, mal planejados e construídos. Muita gente vive em porões nada agradáveis, úmidos e embolorados. Quando pude, incentivei as pessoas a instalar janelas maiores. A minha casa ficava encostada numa grande rocha e eu ouvia o murmúrio da água que minava nos fundos e mofava minhas roupas. Batia pouco sol na casa. Fiquei doente umas quatro vezes.
Chamava minha atenção a saúde das mulheres. As meninas, de corpinhos esculturais aos 13, 14 anos, chegam disformes aos 30 e são obesas aos 40. Não fiz pesquisa, mas pude constatar que há muitas mortes prematuras, por diabetes ou doenças do coração, como a mãe da moça que me alugava a casa. A sogra dela também era tão gorda que já fazia muito tempo que não saía de casa. Conheci mulheres bem velhas, de uma associação comunitária, gozando de alguma saúde, todas viúvas, porque os homens também adoecem e morrem cedo. Eram sobreviventes do lúgubre.
Acho que outra causa da obesidade (sem descartar a genética do negro carioca), devia ser a dificuldade de se alimentar bem. Eu subia quase 200 degraus (sempre perdi a conta no final), duas ou três vezes por dia e via o sofrimento das pessoas, carregando as compras e tendo que parar no caminho para respirar. É dureza subir morro e longas escadarias com sacolas pesadas, tarefa quase sempre das mulheres. Comprar dentro do morro custa muito caro (certa vez paguei 3 reais num sabonete) e quase não tem comércio de alimentos crus lá em cima. E como se alimentar bem com os preços dos mercados da zona sul? Até para mim, jornalista pós-graduada e professora universitária, a vida era muito cara. Sim, meu salário podia ser ridículo, mas a maioria vive com menos que você e eu pagamos de cartão de crédito.
Outra explicação para a obesidade podia ser a quantidade absurda do consumo de industrializados baratos. Sacos de salgadinhos do tipo chips e copos de guaraviton ficam espalhados por toda a comunidade, em geral descartados pelas crianças e jovens adolescentes. Parece que chips é um tipo de alimento básico entre aquela população. Ficava imaginando oferecer à empresa do guaraná um projeto de responsabilidade social dentro da comunidade, já que a favela inteira consumia a água açucarada com essência de guaraná. Eles podiam ensinar a recolher, reciclar, sei lá.
Nunca passei medo morando na favela, nem quando andava de madrugada pelos becos mal iluminados. Entrava e saía com malas, viajava no final de semana e deixava tudo na casa. A porta da frente estufou por causa da umidade, mandei arrumar duas vezes e voltou a empenar. Ficou mais de um mês daquele jeito, só encostada, e nunca sumiu nada, nem um par de sapatos que, aliás, ficava num caixote do lado de fora. O terreno era fechado, mas isso não significava nada para a segurança, qualquer um entraria se quisesse. Sempre tive postura cautelosa em relação aos policiais da UPP, mas procurava olhar nos olhos deles. Observei que eles não olhavam na nossa cara, mas não presenciei qualquer violência naqueles meses. Chapéu Mangueira é quieta, cordata.
Não encontrei na favela diversão de acordo com o nosso imaginário. Nunca vi um baile funk ou curti um bom pagode (festas só nos hostels de estrangeiros). Mais popular era o Bar do Davi, boteco do guia da Veja, que fechava cedo e era só para comer e beber. Tocava, sim, muita musica gospel e há vários templos evangélicos. Quase toda a favela converteu-se ao pentecostalismo. Assim como ouvi muitos relatos de apoio à pacificação. A família que me alugava a casa também é dona de um hostel e eles sempre defenderam o controle pela polícia. Também são novos crentes.
Para mim, o certo não era nem polícia nem pastor. Nem funk nem gospel. Nem medo nem liberdade vigiada. Gostaria era de andar numa favela de casas pintadas de verde-limão, ouvir sons diferentes de cada janela, provar da comida cujo cheiro do alho frito impregnava as vielas no meio da manhã. Dava para ouvir o chiado da panela de pressão. Queria uma favela lavada todo dia com pinho sol. Superficialidade desejar uma favela colorida e cheirosinha. Mas salubridade, comida e cultura são essenciais.
Ainda assim, fui feliz lá.
Viver dentro da favela me fazia sentir que eu tinha uma vida igual de todo mundo, com as mesmas agruras. Subir a escadaria era uma penitência diária pelo pecado de ter um corpo. Quando ia chegando, o mal cheiro da viela me lembrava que atras de mim ficava o mundo da pseudo felicidade da orla. Entrar naquele território era viver a coisa crua, com as casas deixadas no concreto, a sujeira espalhada sem nenhuma vergonha, a evidência da outra lógica, de outras noções de vida e de organização social, com suas lutas e regras próprias.
Fui feliz. Até namorei. Sweet nights with Mike. Enquanto eu cozinhava, ele me ensinava pronunciar corretamente trechos dos meus rock's preferidos.
Salvei os gatinhos de morrer de fome, castrei gatas parideiras (elas chegam a ter dez ou mais crias), levava as crianças da vizinha para a praia, enquanto ela trabalhava feito louca para alimentar os três, sem marido. Conheci gente que me convidava para entrar em suas casas com sinceridade e sentia prazer em conversar sobre a vida.
Fui feliz.
Pena que quase não tenho fotos para ilustrar o texto. Quase todas estavam no meu notebook, furtado num hostel bacaninha, onde passei uma noite, na Vila Madalena, em São Paulo.
Chapéu Mangueira é uma comunidade que não tem mais espaço para crescer. Isso faz com que cada palmo do terreno seja valioso e disputado. A maior parte das famílias vive na favela a três ou quatro gerações, são pessoas nascidas lá, que têm orgulho disso, mas eles sabem que seus filhos já não poderão construir seus lares lá dentro. Entre outros fatores, isso mantém as famílias unidas, os lares vão crescendo para o alto e a falta de oportunidade para os filhos, como estudar fora, evita o desgarramento. São estruturas que agregam os pais, os avós, filhos, netos, bisnetos.
A falta de espaço também é motivo de rivalidade entre os moradores. A cara feia da vizinha era reflexo dos conflitos com os donos da obra onde ficava minha casa. A construção sufocou a casa dela, enfiada num buraco na frente da minha. Meio metro a mais de parede pode obstruir a entrada de vento ou sol por uma janela, o que é péssimo para ambientes que já são apertados, mal planejados e construídos. Muita gente vive em porões nada agradáveis, úmidos e embolorados. Quando pude, incentivei as pessoas a instalar janelas maiores. A minha casa ficava encostada numa grande rocha e eu ouvia o murmúrio da água que minava nos fundos e mofava minhas roupas. Batia pouco sol na casa. Fiquei doente umas quatro vezes.
Chamava minha atenção a saúde das mulheres. As meninas, de corpinhos esculturais aos 13, 14 anos, chegam disformes aos 30 e são obesas aos 40. Não fiz pesquisa, mas pude constatar que há muitas mortes prematuras, por diabetes ou doenças do coração, como a mãe da moça que me alugava a casa. A sogra dela também era tão gorda que já fazia muito tempo que não saía de casa. Conheci mulheres bem velhas, de uma associação comunitária, gozando de alguma saúde, todas viúvas, porque os homens também adoecem e morrem cedo. Eram sobreviventes do lúgubre.
Acho que outra causa da obesidade (sem descartar a genética do negro carioca), devia ser a dificuldade de se alimentar bem. Eu subia quase 200 degraus (sempre perdi a conta no final), duas ou três vezes por dia e via o sofrimento das pessoas, carregando as compras e tendo que parar no caminho para respirar. É dureza subir morro e longas escadarias com sacolas pesadas, tarefa quase sempre das mulheres. Comprar dentro do morro custa muito caro (certa vez paguei 3 reais num sabonete) e quase não tem comércio de alimentos crus lá em cima. E como se alimentar bem com os preços dos mercados da zona sul? Até para mim, jornalista pós-graduada e professora universitária, a vida era muito cara. Sim, meu salário podia ser ridículo, mas a maioria vive com menos que você e eu pagamos de cartão de crédito.
Outra explicação para a obesidade podia ser a quantidade absurda do consumo de industrializados baratos. Sacos de salgadinhos do tipo chips e copos de guaraviton ficam espalhados por toda a comunidade, em geral descartados pelas crianças e jovens adolescentes. Parece que chips é um tipo de alimento básico entre aquela população. Ficava imaginando oferecer à empresa do guaraná um projeto de responsabilidade social dentro da comunidade, já que a favela inteira consumia a água açucarada com essência de guaraná. Eles podiam ensinar a recolher, reciclar, sei lá.
Nunca passei medo morando na favela, nem quando andava de madrugada pelos becos mal iluminados. Entrava e saía com malas, viajava no final de semana e deixava tudo na casa. A porta da frente estufou por causa da umidade, mandei arrumar duas vezes e voltou a empenar. Ficou mais de um mês daquele jeito, só encostada, e nunca sumiu nada, nem um par de sapatos que, aliás, ficava num caixote do lado de fora. O terreno era fechado, mas isso não significava nada para a segurança, qualquer um entraria se quisesse. Sempre tive postura cautelosa em relação aos policiais da UPP, mas procurava olhar nos olhos deles. Observei que eles não olhavam na nossa cara, mas não presenciei qualquer violência naqueles meses. Chapéu Mangueira é quieta, cordata.
Não encontrei na favela diversão de acordo com o nosso imaginário. Nunca vi um baile funk ou curti um bom pagode (festas só nos hostels de estrangeiros). Mais popular era o Bar do Davi, boteco do guia da Veja, que fechava cedo e era só para comer e beber. Tocava, sim, muita musica gospel e há vários templos evangélicos. Quase toda a favela converteu-se ao pentecostalismo. Assim como ouvi muitos relatos de apoio à pacificação. A família que me alugava a casa também é dona de um hostel e eles sempre defenderam o controle pela polícia. Também são novos crentes.
Para mim, o certo não era nem polícia nem pastor. Nem funk nem gospel. Nem medo nem liberdade vigiada. Gostaria era de andar numa favela de casas pintadas de verde-limão, ouvir sons diferentes de cada janela, provar da comida cujo cheiro do alho frito impregnava as vielas no meio da manhã. Dava para ouvir o chiado da panela de pressão. Queria uma favela lavada todo dia com pinho sol. Superficialidade desejar uma favela colorida e cheirosinha. Mas salubridade, comida e cultura são essenciais.
Ainda assim, fui feliz lá.
Viver dentro da favela me fazia sentir que eu tinha uma vida igual de todo mundo, com as mesmas agruras. Subir a escadaria era uma penitência diária pelo pecado de ter um corpo. Quando ia chegando, o mal cheiro da viela me lembrava que atras de mim ficava o mundo da pseudo felicidade da orla. Entrar naquele território era viver a coisa crua, com as casas deixadas no concreto, a sujeira espalhada sem nenhuma vergonha, a evidência da outra lógica, de outras noções de vida e de organização social, com suas lutas e regras próprias.
Fui feliz. Até namorei. Sweet nights with Mike. Enquanto eu cozinhava, ele me ensinava pronunciar corretamente trechos dos meus rock's preferidos.
Salvei os gatinhos de morrer de fome, castrei gatas parideiras (elas chegam a ter dez ou mais crias), levava as crianças da vizinha para a praia, enquanto ela trabalhava feito louca para alimentar os três, sem marido. Conheci gente que me convidava para entrar em suas casas com sinceridade e sentia prazer em conversar sobre a vida.
Fui feliz.
Pena que quase não tenho fotos para ilustrar o texto. Quase todas estavam no meu notebook, furtado num hostel bacaninha, onde passei uma noite, na Vila Madalena, em São Paulo.
quarta-feira, 9 de julho de 2014
Sem esquecimento não haveria felicidade
O esquecimento é como a digestão corporal: tritura, pulveriza, desfaz as experiências, assimila-as
Sem capacidade de esquecimento não haveria felicidade, nem jovialidade, nem esperança, nem sequer orgulho. De que poderia me orgulhar se continuamente recordasse todas as minhas humilhações? Que esperança me pode restar se diante de mim aparecessem todos os meus fracassos, como se tivessem projetados em uma tela? Que jovialidade poderia se manter se recordasse todas e cada uma de minhas caduquices?
De Michel Foucault
De Michel Foucault
domingo, 1 de junho de 2014
Os corações nos caminhos
Praia do Sono, na divisa do litoral Norte paulista e o Sul fluminense, tinha sido desde muito tempo um desejo de descoberta quase mítico. Ouvira falar muitas vezes, mas imaginava uma grande dificuldade de acesso. Lá não chega carro, não tem pousada, apenas uma comunidade de pescadores, que serve comida em seus ranchos de pesca. Até que um dia uma faceira amiga de aventuras topou e lá fui para Sono.
Saindo de Paraty, uns 13 km em direção ao Sul, pega a estrada de Trindade, mas no ponto mais alto, bifurca à esquerda até a portaria do luxuoso condomínio Laranjeiras. Da portaria, quem vai para o Sono é orientado a pegar um caminho que leva ao lado pobre do condomínio, onde vivem os empregados das mansões. Por ali, o caiçara abandonou as atividades da pesca para se tornar empregado doméstico.
O carro fica estacionado na vila e quem vai paro o Sono começa uma caminhada de uma hora mais ou menos por trilha íngreme que margeia o mar. Há belíssima paisagens, cachoeiras, pequenos animais e muita, muita árvore linda, uma mais linda que a outra. Voltei lá muitas vezes, o caminho tornou-se fácil com o tempo, mas aquela primeira expedição foi cheia de sentidos.
Quando descemos a última parte da trilha, e botei o pé na areia grossa, finalmente entendi o que é a Praia do Sono: uma maravilhosa extensão de mar verde-escuro, de bravura branda, com uma longa borda branca e borbulhante, todo margeado por imensos chapéus-de-couro, de frondosos ramos que acolhem os ranchos de pesca e oferecem generosa sombra. É um desejo de não despertar, de ser absorvido por aquela beleza e não retornar nunca mais.
Seguimos caminhando pela areia. Eu estava encantada, aliviada de ter vencido a temida trilha, de estar naquele lugar que a geografia protegeu da chegada civilizatória e da consequente deterioração que se vê em praias e comunidade da região.
Subindo a faixa de areia, que não é muito larga, no terreno plano, de chão batido, ficam os ranchos dos pescadores e mais ao fundo as casinhas caiçaras, de pau-a-pique, pintadas de branco, com janelinhas ao lado da porta e uma chaminé, igual os desenhos da minha infância. Não há cerca nem muros, as crianças brincam à vontade, é cheio de vira-lata, os homens reunidos costurando as redes e as mulheres em seus afazeres. No extremo da praia tem uma entrada para a comunidade, tudo por trilha, margeando um riacho que vem da Serra, e quando se encontra alguém no caminho, é sempre bom dia, boa tarde, porque essa gente é simples, mas é educado cumprimentar, tratar por senhor, senhora.
Por umas três ou quatro da tarde decidimos que era hora de pegar o caminho de volta. Seguimos pelos ranchos, protegendo de chuva fina que veio com uma virada do tempo. De longe, avistei um rancho cheio de gente sentada nos caibros laterais, era feriado de ano novo, férias e sempre tem turista por ali. Passando pelo rancho, sou surpreendida por um "professora"!
Paralisei. Estava na minha frente um rapaz alto, negro, de drede no cabelo, vestido como um hippie, segurando um pano preto pendurado de brincos de miçangas e penas coloridas. "Não lembra mais de mim?"
Ainda que eu estivesse sob efeito alucinógeno, conseguia raciocinar para ter certeza de que aquele não tinha sido, definitivamente, meu aluno. Eu era professora numa escola da zona sul de São Paulo, particular e cara. "Se você tivesse sido meu aluno, eu me lembraria", respondi. Ele caiu na risada. Mostrando uma boca com poucos dentes, apontou uma garota e respondeu: "tô brincando, professora, ela é sua aluna".
A moça sentada entre a galera tinha os cabelos crespos soltos, usava um brinco do hippie, roupas largas e sorria para mim, se divertindo com a brincadeira e com a cara de susto que eu devia estar. Veio até mim e me abraçou feliz. "Que legal te encontrar aqui, professora!"
Fiquei um tempo olhando, buscando o reconhecimento: era uma aluna atenta e muito quieta, que sentava na primeira fileira e estava sempre com um uniforme verde escuro e cabelo preso, talvez exigência de uma função burocrática. Tinha perdido a prova final, mas eu - sei lá por que, talvez porque a fosse encontrar lá no Sono - tinha resolvido aprová-la sem prova nem trabalho extra, quando veio me pedir ajuda no final do semestre, pelo simples fato de que tinha sido assídua e ouvinte atenta - coisas que sempre achei que devessem bastar a um aluno de graduação: atenção, interesse, envolvimento, presença.
Mais raro que um professor encontrar o aluno certamente é o aluno encontrar o professor... numa praia de pescadores, onde só se chega à pé ou de barco. Jamais me esquecerei dela, ainda que não lembre seu nome.
Aquele encontro, naquele momento e naquele lugar, foi só uma pequena prova de que as decisões que tomei nem sempre foram as mais coerentes, nem os caminhos, os mais fáceis.
Minha razão sempre se mostrou falha, mas minha intuição me reservou boas surpresas. Já nos atalhos, me cansei de encontrar corações, aquele foi só mais um.
Saindo de Paraty, uns 13 km em direção ao Sul, pega a estrada de Trindade, mas no ponto mais alto, bifurca à esquerda até a portaria do luxuoso condomínio Laranjeiras. Da portaria, quem vai para o Sono é orientado a pegar um caminho que leva ao lado pobre do condomínio, onde vivem os empregados das mansões. Por ali, o caiçara abandonou as atividades da pesca para se tornar empregado doméstico.
O carro fica estacionado na vila e quem vai paro o Sono começa uma caminhada de uma hora mais ou menos por trilha íngreme que margeia o mar. Há belíssima paisagens, cachoeiras, pequenos animais e muita, muita árvore linda, uma mais linda que a outra. Voltei lá muitas vezes, o caminho tornou-se fácil com o tempo, mas aquela primeira expedição foi cheia de sentidos.
Quando descemos a última parte da trilha, e botei o pé na areia grossa, finalmente entendi o que é a Praia do Sono: uma maravilhosa extensão de mar verde-escuro, de bravura branda, com uma longa borda branca e borbulhante, todo margeado por imensos chapéus-de-couro, de frondosos ramos que acolhem os ranchos de pesca e oferecem generosa sombra. É um desejo de não despertar, de ser absorvido por aquela beleza e não retornar nunca mais.
Seguimos caminhando pela areia. Eu estava encantada, aliviada de ter vencido a temida trilha, de estar naquele lugar que a geografia protegeu da chegada civilizatória e da consequente deterioração que se vê em praias e comunidade da região.
Subindo a faixa de areia, que não é muito larga, no terreno plano, de chão batido, ficam os ranchos dos pescadores e mais ao fundo as casinhas caiçaras, de pau-a-pique, pintadas de branco, com janelinhas ao lado da porta e uma chaminé, igual os desenhos da minha infância. Não há cerca nem muros, as crianças brincam à vontade, é cheio de vira-lata, os homens reunidos costurando as redes e as mulheres em seus afazeres. No extremo da praia tem uma entrada para a comunidade, tudo por trilha, margeando um riacho que vem da Serra, e quando se encontra alguém no caminho, é sempre bom dia, boa tarde, porque essa gente é simples, mas é educado cumprimentar, tratar por senhor, senhora.
Por umas três ou quatro da tarde decidimos que era hora de pegar o caminho de volta. Seguimos pelos ranchos, protegendo de chuva fina que veio com uma virada do tempo. De longe, avistei um rancho cheio de gente sentada nos caibros laterais, era feriado de ano novo, férias e sempre tem turista por ali. Passando pelo rancho, sou surpreendida por um "professora"!
Paralisei. Estava na minha frente um rapaz alto, negro, de drede no cabelo, vestido como um hippie, segurando um pano preto pendurado de brincos de miçangas e penas coloridas. "Não lembra mais de mim?"
Ainda que eu estivesse sob efeito alucinógeno, conseguia raciocinar para ter certeza de que aquele não tinha sido, definitivamente, meu aluno. Eu era professora numa escola da zona sul de São Paulo, particular e cara. "Se você tivesse sido meu aluno, eu me lembraria", respondi. Ele caiu na risada. Mostrando uma boca com poucos dentes, apontou uma garota e respondeu: "tô brincando, professora, ela é sua aluna".
A moça sentada entre a galera tinha os cabelos crespos soltos, usava um brinco do hippie, roupas largas e sorria para mim, se divertindo com a brincadeira e com a cara de susto que eu devia estar. Veio até mim e me abraçou feliz. "Que legal te encontrar aqui, professora!"
Fiquei um tempo olhando, buscando o reconhecimento: era uma aluna atenta e muito quieta, que sentava na primeira fileira e estava sempre com um uniforme verde escuro e cabelo preso, talvez exigência de uma função burocrática. Tinha perdido a prova final, mas eu - sei lá por que, talvez porque a fosse encontrar lá no Sono - tinha resolvido aprová-la sem prova nem trabalho extra, quando veio me pedir ajuda no final do semestre, pelo simples fato de que tinha sido assídua e ouvinte atenta - coisas que sempre achei que devessem bastar a um aluno de graduação: atenção, interesse, envolvimento, presença.
Mais raro que um professor encontrar o aluno certamente é o aluno encontrar o professor... numa praia de pescadores, onde só se chega à pé ou de barco. Jamais me esquecerei dela, ainda que não lembre seu nome.
Aquele encontro, naquele momento e naquele lugar, foi só uma pequena prova de que as decisões que tomei nem sempre foram as mais coerentes, nem os caminhos, os mais fáceis.
Minha razão sempre se mostrou falha, mas minha intuição me reservou boas surpresas. Já nos atalhos, me cansei de encontrar corações, aquele foi só mais um.
terça-feira, 18 de fevereiro de 2014
Amor perdido
Há tempos tento me convencer que tudo foi como tinha de ser, que não rolou porque não tinha que rolar. Mas não consigo acreditar nisso. Tudo que eu mais queria eram teus beijos, fazer o que toda mulher apaixonada quer, dar para o cara que ela está afim, que ela ama. Naquele momento eu estava louca por você e hoje decidi enxugar as lágrimas para falar da trepada que não rolou, desse amor agora perdido.
Eu só queria dar para você e estraguei tudo. Que merda!
Eu só queria dar para você e estraguei tudo. Que merda!
Você foi a pessoa mais legal, mais tudo a ver que tive a sorte de encontrar nos últimos tempos. E, a única coisa que suaviza a raiva de mim mesma é tentar acreditar que nunca ia dar certo, que jamais você se apaixonaria por alguém que nem em toda a vida conseguiria ler os livros que você já leu, entender os temas que você entende, assistir os filmes que você assiste, falar as línguas que você fala...
Você não sabe o quanto me acho tola por não perceber que, pelo menos naquele momento, o mais importante era o tesão. Por que isso não me bastou, por que eu tinha de achar que precisava ser outra pessoa? Queria mesmo era ter tirado a calcinha cor de rosa e aberto as pernas para você, ter colocado meus peitos na tua boca, ter-lhe dado a chupada da tua vida porque aí, mesmo que você desvendasse todos os meus segredos numa única noite e nunca mais me quisesse, você jamais me esqueceria.
Acabei escondendo o melhor de mim. Que merda.
Acabei escondendo o melhor de mim. Que merda.
Tudo que eu precisava era manter o espírito livre, desencanar das certezas e ir contigo para aquele hotelzinho ali do centro, onde a gente pudesse trepar tantas vezes tivéssemos vontade e fazer todas as coisas que tínhamos imaginado naqueles dias que precederam nosso encontro, pelo chat. Havia química, nosso astral batia, o tesão rolava. Estávamos atraídos pela pele, pelas mãos, pelo cheiro. O beijo tinha dado certo. Tudo bem que podia não ser nada do que imagináramos, mas agora é tarde demais para saber. O tesão pode ter ido irremediavelmente embora. E eu não peguei no teu pau, não provei da tua porra, não sussurrei no teu ouvido "mete, me fode gostoso". Não gozei na tua boca.
Que merda - não consigo parar de repetir a mim mesma.
Que merda - não consigo parar de repetir a mim mesma.
Nosso primeiro encontro foi o melhor. Ainda me restava alguma segurança. Mas ali já dei início aquele papinho bobo de quero ser sua amiga. Eu devia ter chegado naquele café, sentado do teu lado, encarado teu olhar e ter dito com toda a franqueza: "Eu estou louca de tesão". E você tinha aquele perfume maravilhoso, chegou a falar de uma possível paixão e me fez uma pergunta que só depois eu saberia a resposta. Sim, eu assistiria teus filmes, leria teus livros, ouviria teus CDs, tentaria decorar teus poemas preferidos e tiraria a roupa, chuparia teu pau, ficaria de quatro cada vez que você me desejasse.
E fui dando sequência às infantilidades. Durante o jantar, no nosso segundo encontro, naquele japonês perto dos Arcos, eu não conseguia expressar nenhuma coisa inteligente e perdi a oportunidade de ouvir de novo os versos do Bandeira (que eu torço para que você se lembre deles). O decote era ousado e chamava sua atenção, eu tinha depilado a virilha e já estava com a calcinha molhada só de esfregar suas coxas. Mas ao invés de seguir contigo, fugi naquele táxi amarelo.
O tesão que ainda me queima me diz que qualquer coisa teria sido melhor do que isso agora. A tua presença silenciosa na rede, as entradas e saídas do FB sem nunca mais piscar o alerta das mensagens a me avisar que lá vinha você, querendo falar sacanagem, ficar de pau duro de novo e bater uma punheta enquanto te fazia imaginar que era eu debruçada na tua frente, te chupando loucamente para depois ser passionalmente comida por você.
E, finalmente, a aquele terceiro encontro, o pior de todos. Teria sido lindo o passeio pelos casarões e ruas estreitas, livrarias e cafés, mas me superei na estupidez. Nenhuma resposta honesta. Só um desejo desesperado de aprovação, que tu cruelmente me negaste. Tentativas inúteis de consertar o que já não tinha mais conserto. E ainda que tivesse restado em ti um pouco do tesão que o movera até ali, o fogo se esvaneceu frente às minhas frágeis tentativas de parecer aos teus olhos um pouco melhor do que imagino que sou.
Escondi o que eu sentia e agreguei burrice a tudo.
Escondi o que eu sentia e agreguei burrice a tudo.
Pior é ser consumida pela noção de que aquela mulher que despertou teu desejo existe. Há em mim um pouco de tudo que imaginaste. Minha natureza romântica, submissa, passiva, só queria ser possuída por você. Falaria o que quisesses ouvir, juraria, cederia, fingiria ser eternamente tua quando teus instintos estivessem exaltados e praticaria todas os outros verbos que rimassem com aquela possível paixão.
Camuflei meus desejos, tentei controlar nossos destinos. Boicotei o lance mais legal que rolou desde há muito tempo. E tudo que consegui foi aquele beijo na testa de despedida.
Não era isso que eu desejava, o teu respeito, no lugar do teu pau e dos teus versos?
Não era isso que eu desejava, o teu respeito, no lugar do teu pau e dos teus versos?
Foi o que me deste. Foi o que mereci. Que merda.
quinta-feira, 23 de janeiro de 2014
Recordações de uma repórter
Noites quentes de verão costumam me trazer à lembrança os meses que trabalhei como repórter do jornal O ValeParaibano, na sucursal de Caraguatatuba, no litoral Norte paulista. O cargo era ocupado por Salim Burihan, intrépido repórter, meu amigo até hoje, que acabara de ser contratado pela Folha de S. Paulo, o que me deu a oportunidade de ir para lá. Coincidiu que minha família herdara um sobrado no bairro do Tinga, que ninguém usava, e me mudei para Caraguá. Levei ou comprei, não lembro, uma bicicleta, que eu usava para fazer matérias em locais mais próximos; aprendi a fotografar, com a ajuda do chefe da fotografia do Vale, Paulo Torraca e, em muitas ocasiões minhas reportagens eram capa do jornal.
Cobria crimes ambientais, quase sempre. Desmatamentos na Serra do Mar, prisão de palmiteiros, manchas de óleo no mar (que vazavam dos petroleiros sucateados da Petrobrás), ocupações ilegais, pesca predatória, lixo nas praias, esgoto lançado no mar e mais um tanto de coisas. Em outubro de 92 cobri as operações de resgate dos ocupantes de um helicóptero arremessado ao mar por uma tempestade, num local chamado Ponta Negra, limite de Ubatuba e Paraty, cujos um dos corpos, o do deputado Ulysses Guimarães, como todos sabem, jamais foi encontrado. Passei quase uma semana no condomínio de luxo que servia de base para as equipes de busca, junto com um batalhão de repórteres e fotógrafos, acompanhando o resgate. Conheci o Gabeira cobrindo para a Zero Hora, o Ernesto Paglia, para a Rede Globo. Fiquei tostada, porque ficávamos o dia todo lá, sem proteção, água ou comida, esperando a informação que seria a matéria do dia. Aprendi muito naquela cobertura.
Mas o melhor tempo da minha vida de correspondente aconteceu no dia que entrei no botequinho ao lado da sucursal e descobri um pessoal lendo as minhas matérias nas laudas de jornal que eu havia jogado fora. Sim, naquele tempo a gente escrevia tudo em laudas datilografadas numa Olivetti. Eles tinham recolhido a pilha (de uns 15 centímetros de altura), com todas as matérias que eu havia publicado nos últimos meses e se divertiam lendo as historias. Fiquei intrigada, afinal, não tinham lido no jornal? Curiosamente, entendi que ler na lauda lhes parecia mais interessante. Eles recordavam as histórias esquecidas, podiam ler aleatoriamente, ver as palavras cortadas ou acrescidas de última hora, entender detalhes das reportagens que o jornal, nos processos de edição, tivessem tirado o gosto. Lembro de perguntar porque liam as laudas e alguém respondeu, "tá gostoso de ler aqui". Simpatizei com eles e formamos uma amizade que duraria todo aquele verão e que eu guardo como um dos melhores tempos da minha vida.
O grupinho era formado pelo Mané Português, dono do bar, o Henrique, contato publicitário do jornal e a menina do administrativo, cujo nome não lembro. Embora fôssemos colegas, foi a partir daquele momento que nos tornamos amigos. Éramos pobres, tínhamos uma vida marginal. Eu, apesar de jornalista e de gozar de algumas regalias, não queria compactuar com a vida tosca da cidade e preferia a companhia dos meus novos amigos. Henrique emprestava do colega de quarto um fusca 67 ou 69 (emprestava!), um cacareco e a gente dava altos rolês pela região. No auge daquele verão de 92/93, fazia um calorão dos infernos, faltava água na cidade, a gente passava sufoco o dia todo, mas a noite íamos nos refrescar no "polção".
Tinha uma placa, escrito assim mesmo, na entrada do local. Um grande poço, formado por uma cachoeira, em meio a mata, que servia de luxuosa banheira para aliviar o calorão daquele meses quentes. Ficávamos os quatro, cada um acocorado numa pedra, durante uma hora ou mais, até o corpo gelar. A gente parava o carro longe, atravessava uma cerca de arame farpado, pegava uma trilha e seguia até o poço, com o Mané Português, medroso que era, mandando falar baixo para não despertar a atenção da dona do terreno que a gente atravessava. Foram muitas noites ali, contando histórias, reclamando e rindo da vida. Até hoje fecho os olhos e me recordo das sensações de prazer e medo que aqueles banhos noturnos, no meio do mato, com os barulhos estranhos da noite, me proporcionavam.
Um dia me avisaram que o sobrado tinha sido vendido e, com a pobreza do salário que eu recebia, me mudei para a casa onde funcionava a sucursal. Eu morei na sucursal uns três meses ou mais! De dia, escrevia as matérias; à noite, tirava um colchão de trás do armário, colocava no chão e dormia por lá mesmo. Mais de vinte anos se passaram e ainda me pergunto como fui capaz. A sucursal tinha um vigilante noturno, um brutamonte que me considerava patrimônio do jornal. Eu costumava ficar sabendo, dias depois, que tinham me procurado, alguém me chamando para uma cerveja, e ele dizia que eu não estava e depois justificava que era para me proteger...
Naquela época, um colega da Gazeta Mercantil sugeriu que eu escrevesse essa história: uma repórter que morava dentro da sucursal, fazia matérias de bicicleta e tomava banho de cachoeira à noite. Prometi que o faria e agradeço pelo incentivo, embora não saiba mais onde encontrá-lo para dizer que, hoje, finalmente, cumpri a promessa.
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