sexta-feira, 29 de agosto de 2014

DECOTADA

Tem mulher que põe calça agarrada, outra passa batom vermelho, tem a que usa saia curta e a que pendura brincão. Eu mostro os peitos. Não escondo nem na missa. Acho lindo ser assim, peituda, e às vezes, despeitada. Peito é coisa que cresce com a gente, não existe na meninice e aos poucos vai despontando, se avolumando, envergonhando, até ocupar-se do seu lugar. Aí, vira mulherão. Peito cresce, encolhe e murcha; peito encanta, excita, enrijece e balança; peito acolhe, conforta, enche de leite e derrama. Grandão, redondo, pontudo, ovo frito, flácido, rosado, despencado, siliconado, junto ou separado, não importa. Peito pula de alegria, salta de tesão, explode de raiva, se oprime na saudade. Mostra o peito, mulher! tenho vontade de dizer, mas peito é coisa que se res-peita. Peito a gente ama, mama, nina. Peito é assim, exuberante, provocativo; pode ser delicado e sensível e muitas, muitas vezes, peito fica dolorido, angustiado, solitário, e é até traído. Peito dói, peito adoece. Se pudesse, extirpava. Mas, peito de verdade, esquece a dor, se apruma, veste seu melhor decote e vai a luta sem pudor.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Sob a sombra do Chapéu Mangueira

Morei quatro meses numa favela do Rio, no Chapéu Mangueira, comunidade pequena do Leme, ao lado da Babilônia. Tinha cansado da experiência de alugar quarto em Copacabana e aceitei pagar os 900 reais mensais por uma casa pequena. Dei sorte. Inacabada, como quase tudo na favela, a casa ficava no fim de uma viela usada por poucas famílias. Para entrar no meu terreno atravessava um portãozinho no fim da subidinha. Era bem privativo, silencioso e suficiente para mim, com dois  quartos pequenos, uma cozinha minúscula e um banheirinho, mas recebi até quatro pessoas para jantar. Para ver o mar eu subia na laje. Para chegar à praia era só descer o escadão. 

Chapéu Mangueira é uma comunidade que não tem mais espaço para crescer. Isso faz com que cada palmo do terreno seja  valioso e disputado. A maior parte das famílias vive na favela a três ou quatro gerações, são pessoas nascidas lá, que têm orgulho disso, mas eles sabem que seus filhos já não poderão construir seus lares lá dentro. Entre outros fatores, isso mantém as famílias unidas, os lares vão crescendo para o alto e a falta de oportunidade para os filhos, como estudar fora, evita o desgarramento. São estruturas que agregam os pais, os avós, filhos, netos, bisnetos. 

A falta de espaço também é motivo de rivalidade entre os moradores. A cara feia da vizinha era reflexo dos conflitos com os donos da obra onde ficava minha casa. A construção sufocou a casa dela, enfiada num buraco na frente da minha. Meio metro a mais de parede pode obstruir a entrada de vento ou sol por uma janela, o que é péssimo para ambientes que já são apertados, mal planejados e construídos. Muita gente vive em porões nada agradáveis, úmidos e embolorados. Quando pude, incentivei as pessoas a instalar  janelas maiores. A minha casa ficava encostada numa grande rocha e eu ouvia o murmúrio da água que minava nos  fundos e mofava minhas roupas. Batia pouco sol na casa. Fiquei doente umas quatro vezes. 

Chamava minha atenção a saúde das mulheres. As meninas, de corpinhos esculturais aos 13, 14 anos, chegam disformes aos 30 e são obesas aos  40. Não fiz pesquisa, mas pude constatar que há muitas mortes prematuras, por diabetes ou doenças do coração, como a mãe da moça que me alugava a casa. A sogra dela também era tão gorda que já fazia muito tempo que não saía de casa. Conheci mulheres bem velhas, de uma associação comunitária, gozando de alguma saúde, todas viúvas, porque os homens também adoecem e morrem cedo. Eram sobreviventes do lúgubre. 

Acho que outra causa da  obesidade (sem descartar a genética do negro carioca), devia ser a dificuldade de se alimentar bem. 
Eu subia quase 200 degraus (sempre perdi a conta  no final), duas ou três vezes por dia e via o sofrimento das pessoas, carregando as compras e tendo que parar no caminho para respirar. É dureza subir morro e longas escadarias com sacolas pesadas, tarefa quase sempre das mulheres. Comprar dentro do morro custa muito caro (certa vez paguei 3 reais num sabonete) e quase não tem comércio de alimentos crus lá em cima. E como se alimentar bem com os preços dos mercados da zona sul? Até para mim,  jornalista pós-graduada e professora universitária, a vida era muito cara. Sim, meu salário podia ser ridículo, mas a maioria vive com menos que você e eu pagamos de cartão de crédito. 

Outra explicação para a obesidade podia ser a quantidade absurda do consumo de industrializados baratos. Sacos de salgadinhos do tipo chips e copos de guaraviton ficam espalhados por toda a comunidade, em geral descartados pelas crianças e jovens adolescentes. Parece que chips é um tipo de alimento básico entre aquela população. Ficava imaginando oferecer à empresa do guaraná um projeto de responsabilidade social dentro da comunidade,  já que a favela inteira consumia a água açucarada com essência de guaraná. Eles podiam ensinar a recolher, reciclar, sei lá. 

Nunca passei medo morando na favela, nem quando andava de madrugada pelos becos mal iluminados. Entrava e saía com malas, viajava no final de semana e deixava tudo na casa. A porta da frente estufou por causa da umidade,  mandei arrumar duas vezes e voltou a empenar. Ficou mais de um mês daquele jeito, só encostada, e nunca sumiu nada, nem  um par de sapatos que, aliás, ficava num caixote do lado de fora. O terreno era fechado, mas isso não significava nada para a segurança, qualquer um entraria se quisesse. Sempre tive postura cautelosa em relação aos policiais da UPP, mas procurava olhar nos olhos deles. Observei que eles não olhavam na nossa cara, mas não presenciei qualquer violência naqueles meses. Chapéu Mangueira é quieta, cordata.  

Não encontrei na favela diversão de acordo com o nosso imaginário. Nunca vi um baile funk ou curti um bom pagode (festas só nos hostels de estrangeiros). Mais popular era o Bar do Davi, boteco do guia da Veja, que fechava cedo e era só para comer e beber. Tocava, sim, muita musica gospel e há vários templos evangélicos. Quase toda a favela converteu-se ao pentecostalismo. Assim como ouvi muitos relatos de apoio à pacificação.  A família que me alugava a casa também é dona de um hostel e eles sempre defenderam o controle pela polícia. Também são novos crentes.

Para mim, o certo não era nem  polícia nem pastor. Nem funk nem gospel. Nem medo nem liberdade vigiada. Gostaria era de andar numa favela de casas pintadas de verde-limão, ouvir sons diferentes de cada janela, provar da comida cujo cheiro do alho frito impregnava as vielas no meio da manhã. Dava para ouvir o chiado da panela de pressão.  Queria uma favela lavada todo dia com pinho sol. Superficialidade desejar uma favela colorida e cheirosinha. Mas salubridade, comida e cultura são essenciais. 

 Ainda assim, fui feliz lá.

Viver dentro da favela me fazia sentir que eu tinha uma vida igual de todo mundo, com as mesmas agruras. Subir a escadaria era uma penitência diária pelo pecado de ter um corpo. Quando ia chegando, o mal cheiro da viela me lembrava que atras de mim ficava o mundo da pseudo felicidade da orla.  Entrar naquele território era viver a coisa crua, com as casas deixadas no concreto, a sujeira espalhada sem nenhuma vergonha, a evidência da outra lógica, de outras noções de vida e de organização social, com suas lutas e regras próprias. 

Fui feliz. Até  namorei. Sweet nights with Mike. Enquanto eu cozinhava, ele me ensinava pronunciar corretamente trechos dos meus rock's preferidos. 

Salvei os gatinhos de morrer de fome, castrei gatas parideiras (elas chegam a ter dez ou mais crias), levava as crianças da vizinha para a praia, enquanto ela trabalhava feito louca para alimentar os três, sem marido. Conheci gente que me convidava para entrar em suas casas com sinceridade e sentia prazer em conversar sobre a vida.


Fui feliz. 

Pena que quase não tenho fotos para ilustrar o texto. Quase todas estavam no meu notebook, furtado num hostel bacaninha, onde passei uma noite, na Vila Madalena, em São Paulo.