Quando
me formei, em 85, não achava que seria jornalista. Fiz Puccamp,
discutíamos muito política, mas quase nada havia de prática. Ia aprender
a escrever leads trabalhando. Sem saber direito o que faria, decidi me
juntar a um grupo de amigos de Campinas, que estava indo montar um
restaurante em Arraial D'Ajuda, no Sul da Bahia. A sociedade do
restaurante era formada por dois tatuadores, os irmãos
Gato e Liliu (que eu adoraria reencontrar), uma moça dona de uma
liberdade que me fazia inveja, chamada Roseli, e lá estaria esperando
por eles a "Baiana", uma nativa, morena de cabelos cacheados, muito
linda, que fui conhecer ao chegar. Roseli gostava de dançar e não estava
a fim daquele tipo de trabalho, os meninos não sabiam muito bem por
onde começar e a Baiana estava grávida, já com uma barriga grande.
Entrei na história. Comecei a abrir as caixas, ajeitar aqui e ali, o
grupo se empolgou e aos poucos o restaurante foi tomando jeito. Os
meninos, bons desenhistas, pintaram um bruxo mexendo um caldeirão na
fachada da casinha branca, alugada de uma família local, bem no
comecinho da descida para a praia. O desenho era uma referência ao nome
do estabelecimento: Poção Mágica. Logo, a comida da Baiana pegou fama,
tinha gente que vinha em busca de cura para as diarréias que acometiam
os turistas naquela Arraial D"Ajuda já muito frequentada, mas sem nenhum
saneamento básico. De manhã, a gente servia um musle de frutas com
iogurte e suco natural e quando o pessoal voltava, no final da tarde, o
almoço era um prato único, geralmente composto de arroz ou macarrão
integral, uma salada de cenoura e beterraba raladas e uma verdura
cozida. Quando a balsa quebrava e o Paulinho (um menino baixinho e muito
esperto) não podia ir para Porto Seguro comprar comida, Baiana entrava
no mato e trazia umas folhas grossas de Taioba e preparava um tal
caruru, amargoso, mas que todo mundo comia porque a comida era mesmo boa
e bem feita. Tinha vez que a gente encerrava o trabalho e pegava um
ônibus para Trancoso. Passava a noite inteira nos bares do quadrado e
depois voltava à pé para Ajuda, mascando semente de guaraná. Eram uns 13
km pela areia. Descobri que frequentemente os rios mudavam de curso até
chegar ao mar, que as cores eram outras a cada hora do dia, que o mar
era religioso nas suas ondulações, de manhã mansinho e raso, à tarde
escuro e bravio. A gente recolhia uma alga verdinha, parecida com
pequenos pés de alface e Baiana fazia torta e enfeitava com aquilo. A
gringaiada adorava! Tínhamos noites de música, com o argentino Javier,
"Ravi" (o cara mais bonito da minha juventude), que tocava oboé como
mestre e a casa estava sempre cheia, com as visitas que iam de Campinas e
passavam um tempo trabalhando com a gente, mais o pessoal interessado
em comer, fazer tatuagem e conhecer a Baiana, que cozinhava quase
pelada. Era calor demais, a cozinha fervia e ela era cheia de vida e
espontaneidade. Eu colocava as visitas para lavar as louças
(na verdade pratos de cerâmica), em mutirão, com água do poço. Dormíamos
amontoados em dois pequenos quartos, mas tinha maça com mel todo dia,
tempo para dançar lambada, ficar à toa, namorar, falar de política. Foi
um lindo ensaio de vida em comunidade. De viver sem projeto, de conhecer
pessoas e logo se despedir delas, com o coração alegre de tê-las
encontrado. Passaram-se quase 30 anos, mas hoje eu me lembrei que foi
lá, com a Baiana, que aprendi a descascar cebolas.
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