quinta-feira, 28 de novembro de 2013

POÇÃO MÁGICA

Quando me formei, em 85, não achava que seria jornalista. Fiz Puccamp, discutíamos muito política, mas quase nada havia de prática. Ia aprender a escrever leads trabalhando. Sem saber direito o que faria, decidi me juntar a um grupo de amigos de Campinas, que estava indo montar um restaurante em Arraial D'Ajuda, no Sul da Bahia. A sociedade do restaurante era formada por dois tatuadores, os irmãos Gato e Liliu (que eu adoraria reencontrar), uma moça dona de uma liberdade que me fazia inveja, chamada Roseli, e lá estaria esperando por eles a "Baiana", uma nativa, morena de cabelos cacheados, muito linda, que fui conhecer ao chegar. Roseli gostava de dançar e não estava a fim daquele tipo de trabalho, os meninos não sabiam muito bem por onde começar e a Baiana estava grávida, já com uma barriga grande. Entrei na história. Comecei a abrir as caixas, ajeitar aqui e ali, o grupo se empolgou e aos poucos o restaurante foi tomando jeito. Os meninos, bons desenhistas, pintaram um bruxo mexendo um caldeirão na fachada da casinha branca, alugada de uma família local, bem no comecinho da descida para a praia. O desenho era uma referência ao nome do estabelecimento: Poção Mágica. Logo, a comida da Baiana pegou fama, tinha gente que vinha em busca de cura para as diarréias que acometiam os turistas naquela Arraial D"Ajuda já muito frequentada, mas sem nenhum saneamento básico. De manhã, a gente servia um musle de frutas com iogurte e suco natural e quando o pessoal voltava, no final da tarde, o almoço era um prato único, geralmente composto de arroz ou macarrão integral, uma salada de cenoura e beterraba raladas e uma verdura cozida. Quando a balsa quebrava e o Paulinho (um menino baixinho e muito esperto) não podia ir para Porto Seguro comprar comida, Baiana entrava no mato e trazia umas folhas grossas de Taioba e preparava um tal caruru, amargoso, mas que todo mundo comia porque a comida era mesmo boa e bem feita. Tinha vez que a gente encerrava o trabalho e pegava um ônibus para Trancoso. Passava a noite inteira nos bares do quadrado e depois voltava à pé para Ajuda, mascando semente de guaraná. Eram uns 13 km pela areia. Descobri que frequentemente os rios mudavam de curso até chegar ao mar, que as cores eram outras a cada hora do dia, que o mar era religioso nas suas ondulações, de manhã mansinho e raso, à tarde escuro e bravio. A gente recolhia uma alga verdinha, parecida com pequenos pés de alface e Baiana fazia torta e enfeitava com aquilo. A gringaiada adorava! Tínhamos noites de música, com o argentino Javier, "Ravi" (o cara mais bonito da minha juventude), que tocava oboé como mestre e a casa estava sempre cheia, com as visitas que iam de Campinas e passavam um tempo trabalhando com a gente, mais o pessoal interessado em comer, fazer tatuagem e conhecer a Baiana, que cozinhava quase pelada. Era calor demais, a cozinha fervia e ela era cheia de vida e espontaneidade. Eu colocava as visitas para lavar as louças (na verdade pratos de cerâmica), em mutirão, com água do poço. Dormíamos amontoados em dois pequenos quartos, mas tinha maça com mel todo dia, tempo para dançar lambada, ficar à toa, namorar, falar de política. Foi um lindo ensaio de vida em comunidade. De viver sem projeto, de conhecer pessoas e logo se despedir delas, com o coração alegre de tê-las encontrado. Passaram-se quase 30 anos, mas hoje eu me lembrei que foi lá, com a Baiana, que aprendi a descascar cebolas.

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