Francisco mora duas casas depois da minha. Ele é um tipo meio ruivo, nascido no Sul, com vozeirão de tenor. Popular, muito falante, é puxador de samba. Quando mudou-se para cá, por causa do jeito expansivo e meio desmedido, minha natural sisudez e antipatia por coisas e pessoas esfuziantes, me fazia torcer o nariz para o Francisco. Aos poucos fui-me acostumando com a figura e até gostando de trocar farpas com ele. Ele é bom no embate. Quando estou séria, me chama de madame e não me sinto ofendida quando elogia minha silhueta ao me ver saindo para a academia. Francisco mexe com todo mundo que passa pela nossa rua, a Sabará. No Jardim Ismênia, todas as ruas têm nome de cidades mineiras e Francisco fica ali, vendo quem vai e quem vem, enquanto conserta o defeito dos motores das máquinas de lavar roupas na pequena oficina montada na garagem da sua casa de fachada laranja e onde se vê a placa Refrigeração São Francisco de Assis, obviamente seu protetor.
Homem forte, vigoroso como sua voz, de uns tempos para cá Francisco emagreceu muito. Ausente que andava, ao revê-lo depois de uma temporada, tomei um susto. Mas me contive e perguntei em tom elogioso que elegância era aquela, embora seu ar fosse de cansaço e as roupas largas evidenciassem que não se tratava de magreza de vaidade. Me respondeu que estava com uns problemas, falou numa dor no braço, que não estava podendo trabalhar direito. Enrolou e me deixou sem saber o motivo daquela perda de seis quilos ou mais que o abateu de maneira evidente.
Depois disso, percebi que Francisco mudou a rotina, da lida com os motores pifados, passei a vê-lo nos finais de tarde sentado na calçada - sim, aqui as pessoas ainda têm o costume de sentar na porta de casa - ao lado da Nina, a cachorra de estimação. Continua zombando de um e de outro, meio largado na calçada; aqui ninguém anda mesmo na calçada. O vai e vem se faz pela rua. Observado de perto pela cadela, Nina é companheira inseparável. De cor caramelada, sem raça definida, é uma cadela gorda, roliça, de pernas bem fininhas, e um balanço de ancas desajeitado, talvez pela falta do rabo, extirpado de um modo que só lhe restou um cotoco. Costumo observar que Nina está gorda demais e sou repreendida por Francisco, que justifica a vida de privilégios e regalias que ela leva: come muito bem e dorme na cama dele. Quem sou eu para entender de paixões...
A outra companheira da vida de Francisco é a mulher, cujo nome desconheço, porque só nos tratamos por "amada". Ela chama todo mundo assim. Quando me vê, expansiva como o marido, acena e pergunta: "tudo bem, amada?" no que eu respondo, "tudo bem, amada, e você?". Assim, nunca precisei saber o nome dela, nem nunca trocamos mais que meia duzia de prosas. Mas ontem, quando retornei da ginástica, foi Amada quem encontrei vigiando Nina na voltinha do final da tarde. Quis saber do Francisco. "Deitado, ele não tá muito bom". Francisco tinha ido fazer uma biopsia. "Onde?" Ela circulou a mão pela lateral do abdômen indicando algum lugar entre o baço, o fígado ou o pâncreas. Disse que a médica achou que havia alguma coisa "muito aumentada" por ali, mas fiquei sem explicação sobre de onde exatamente saíram as células suspeitas do corpo do Francisco. Amada teve que correr atrás da Nina, que já se encontrava uns dois postes adiante.
Entrei em casa e comentei: "Francisco fez uma biopsia". Minha mãe, escorpiana e fatalista, disparou: "ele emagreceu muito mesmo, emagrecer assim... já viu, né?". Ficamos uns momentos em silêncio, pensando na biopsia do Francisco, mas logo os gritos da mocinha na TV ligada na novela das seis distraíram a nossa atenção. Hoje de manhã, vi Francisco, Amada e Nina na calçada, saindo da casa de outra vizinha, a cabeleireira que pinta e escova meus cabelos. De dentro do carro, perguntei: "e, aí, tudo bem?" Foi Amada quem explicou que sim, estavam bem, mas hoje ela não ia trabalhar, ficaria em casa cuidando do Francisco.
Novamente me percorreu um pensamento sombrio, mas segui para meu passeio com certo reconforto. Francisco tem duas amadas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário